domingo, 12 de março de 2017


Sol de Si 2 – A missão
Numa dessas últimas feiras do livro de Porto Alegre, estava eu a fuçar naqueles balaios de ofertas de cinco reais, despreocupadamente, nunca tem nada bom naquelas caixas. Mas igual, como todo mundo, examinava as lombadas deixando o fluxo de pensamentos aleatórios me guiar. Lá pelas tantas acho um Alain de Botton novinho, examino e está inteiro, o copyrights é de três anos atrás. Confiro com o vendedor e, sim, está certo o preço, cincão. O título acho que explica o encalhe do livro - Religião para ateus. Ser ateu é uma raridade e religiosos encontram esse título como a lesma encontra o sal, melhor evitar. Mas, como sou ateu de carteirinha e gosto muito do que já conheço do Alain, paguei e fui embora meio rápido para o livreiro não ter tempo de dizer: ah, não, péra!
Ateus são pessoas diferentes de agnósticos. O agnóstico não vê relevância em responder se existe ou não uma força superior, uma divindade criadora e cuidadora, portanto não se faz a pergunta. Ou acredita que é uma pergunta impossível de ser respondida, além da razão humana, por isso não é pertinente, nem precisa ser feita. O ateu, ao contrário, se perguntou e se convenceu que não existe nada no além, estamos sós no universo, por nossa conta mesmo. Na verdade, um ateu, como eu, acha a crença em deus uma tolice total, uma muleta metafísica, uma criancice: Não existe nenhum amiguinho imaginário, nenhum papai do céu vai te ajudar nunca, te vira! Teus familiares morreram mesmo, estão sendo comidos por bactérias no caixão e tu nunca mais vais vê-los, aceite o fato. Ateus adultos abdicam de consolos bobos como ursinhos de pelúcia para dormir. Não tem céu, nem inferno tampouco. Um ateu assume resignado suas cagadas e acidentes, não é um deus te dando uma lição! Só mais um substantivo masculino, deus não tem letra maiúscula. De formas que as religiões são um verdadeiro mistério para um ateu. Como alguém sadio da cabeça perderia algum tempo ou energia se dedicando a algum culto ao sobrenatural? Alain de Botton nos dá a resposta no seu livro. As religiões são produtos culturais, cada cultura tem a sua. Dentro do seu contexto, faz todo sentido, mas, aos olhos dos outros que vivem distante daquela sociedade, é no mínimo bizarra. No entanto, todas as religiões tem pontos em comum que são muito acolhedores para qualquer ser humano. Todas organizam encontros diários ou semanais. Todas costumam entoar canções quando juntos. Todas incentivam a ajudar seus próximos. Todas tem um calendário de comemorações que relembram seus valores. Essas iniciativas contribuem decisivamente para que a comunidade fortaleça seus laços sociais e conserve sua unidade. Alain de Botton, ateu militante, ensina que temos muito o que aprender com as religiões e deveríamos seguir seus bons exemplos.
Quando estava na faculdade, achava tudo uma festa. Nos víamos diariamente e celebrávamos a vida com alegria. Organizavámos festas quase toda semana e sempre tocávamos e cantávamos juntos. Nós nos ajudávamos no que podíamos, desde o dinheiro para a passagem do ônibus, lanches, trabalhos de alguma cadeira, estudos para as provas ou arrumar uma namorada. Eu achava aquela comunidade uma maravilha sem males e os de fora não sabiam o que estavam perdendo! A ESEF da UFRGS era minha religião e eu botava muita fé nela. Completamente laica, nunca ouvi falar em outra fé por lá, no entanto sei que quase todos tinham alguma crença do lado de fora da universidade. E eram as mais diversas! Eu me esforçava para atrair e reunir todo grupo para nossas celebrações e não foram poucas as vezes que organizei festas embaixo do flamboyant florido na frente da garagem dos meus pais. Aquilo me deixava sempre muito feliz. Nesse sentido, eu seguia as orientações de Alain de Botton antes mesmo dele ter escrito seu livro. Mas, depois de sair da faculdade, fui perdendo o contato com os colegas e os laços sociais desapareceram. Minha “religião” acabou.
Minha irmã mais velha sempre gostou de viver em grupo. Sempre participou de corais, grupos de igreja, grupos de poesia ou simplesmente amigos de bar. Se esforça para manter vínculos afetivos importantes durante décadas e não mede esforços para isso. Um dos grupo que ela está engajada atualmente é de canto. O que as une, quase todas são mulheres maduras, é o prazer em cantar. Parece pouco, mas é o suficiente para uní-las de uma forma consistente. Se reúnem semanalmente para ensaiar, verdadeiras papa-hóstias do grupo e, obviamente, pela alegria dos encontros, todas acreditam que fazem parte de um todo maior. O grupo Sol de Si é vibrante e espiritualmente pleno. Sempre me sinto bem observando a fé das ditosas beatas ao grupo, irradiam alegria! Essa semana, organizaram uma festa na garagem da casa dos meus pais em Porto Alegre, como eu e minhas irmãs costumávamos fazer há 20 ou 30 anos. Me convidaram para celebração. Cheguei antes, faceiro com o convite e ajudei um pouco na organização do espaço. Alguém me mostra uma foto da gente arrumando a garagem para a festa e vejo aquele senhor de cabelos brancos, apertado numa camiseta polo, com um tronco massudo, não de músculos, mas de graxas, suando, perfeitamente integrado aos outros veteranos personagens da cena. Não me assusto nem me choco, só me resigno serenamente, aquele senhor estranho do retrato sou eu.
A festa foi marcada para às 19:30 e, em ponto, essa foi a hora que os convidados religiosamente começaram a aparecer. Bem diferente das festas da juventude que começavam a meia noite, agora ninguém precisa provar mais nada para ninguém, mas precisamos todos dormir bem e cedo. As músicas vão se sucedendo noite adentro. Desde Latino, Sidney Magal e trilhas sonoras de velhas novelas como Estúpido Cúpido e Saramandaia, até Raul Seixas, Blitz e Rita Lee, passando por Gloria Gaynor, Beatles e Bee Gees. Acho todas boas, parece que estou ouvindo minha vida toda de novo. Me encaixo perfeitamente na festa e meu corpo se embala junto com o resto do povo. Logo estou viajando no tempo, fora as luzinhas coloridas girando no teto e os corpos experientes, tudo é igual. Vi êxtase eufórico, gozo, júbilo e regozijo. Vi beijo na boca e olhares apaixonados. Vi homens de braços cruzados nos cantos, eu inclusive, mulheres dançando animadas em círculo. Vi hustle e todo mundo cantando e dançando junto. Estava todo mundo celebrando a simples existência. De novo o grupo Sol de Si me surpreende e me ensina a ter fé e um amor religioso pela vida.
Observando a festa do grupo Sol de Si, aquele monte de mulher coroa rebolando ao ritmo do Abba, começam a surgir pensamentos machistas na minha cabeça. Aquela eu comia, aquela também, aquela não. Mulher cinquentona é tudo de bom. Todas já passaram por diversos relacionamentos, já não tem expectativas de encontrar principes encantados. Todas já passaram por diversas dietas e cirurgias, seus corpos já não lutam pela ilusória beleza e nem procuram algum Adonis perfeito. Até eu e meu tronco massudo posso estar no páreo! Todas já não tem preocupações de gravidez indesejada. Todas já pagam suas contas com relativa facilidade sozinhas. São atraentes, charmosas, cheirosas, gostosas, bonitas e inteligentes e tem muitas histórias para contar. Todas já estão no “mode” tô viva, me comando e foda-se. Ou seja, põe os homens em pânico.
Estou ali na festa olhando as bundas que passam e deixando o fluxo de pensamentos aleatórios me guiar, exatamente como quem examina as lombadas de livros procurando uma boa oferta acessível. Como um jacaré que pacientemente espera imóvel a presa passar perto o suficiente, estou pronto para o bote machista. Eu quero, estou excitado, desejante. Mas, em pânico. Os pensamentos atrapalham minha caçada, maldita consciência. Toca Help, dos Beatles. I'm not so self assured. Now I find I've changed my mind and opened up the doors. Se fizer isso para saciar meus apetites de homem, vou possivelmente me queimar no grupo todo. Já estou quase cinquentão e a mulher vai estar com uns 50 anos de bagagem emocional também. A negociação vai ser densa e tensa. Posso sair machucado ou pior, machucar alguém. Agora me considero um feminista. Estrategicamente, recuo a tropa, saio de fininho da festa e resolvo escrever para elas, me declarar. Não posso dizer na cara: olha, vamos trocar carícias íntimas e melecas corporais de forma lúdica e sem fins reprodutivos? Tenho que começar de mansinho, falar do gato que subiu no telhado. Acho que já sei como começar a conversa: Tu és agnóstica? Li um livro, muito interessante, do Alain de Botton...


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