sábado, 12 de dezembro de 2015

Quando eu andava de bicicleta e tinha a oficina muita gente me perguntava sobre o assunto. Eram perguntas que demandavam respostas enormes e a maioria não queria demora. Queriam o fast food do conhecimento, respostas curtas. As mais comuns eram qual bicicleta deveriam comprar ou quanto tempo demorariam para ir pedalando de A para B. Algumas eram muito estúpidas e eu conseguia responder rapidamente:
Qual a melhor bicicleta do mundo?
É aquela que tu andas!!!
Para alguns poucos interlocutores que tinham capacidade para entender eu me esmerava nas respostas:
Quanta quilometragem o cara consegue fazer normalmente com uma bicicleta? Quanto tempo eu demoraria de Pelotas a Rio Grande?
Se tu precisas de respostas rápidas, elas são: não sei. Se tiveres paciência para ler as respostas completas, te mando um email.
Daí eu respondia com algo assim:
Tua pergunta é difícil. Devido à complexidade da resposta e para não te induzir ao erro, prefiro escrever. Claro, também é um assunto que me faz lembrar muita coisa legal, então vou me dar o direito de enrolar um pouquinho para responder bem.
Atualmente, quase ninguém sabe que eu já viajei de bicicleta em priscas eras. Faz muito tempo a última vez que alguém me perguntou algo sobre viagens de bicicleta. Se não é tu falar, eu já ia esquecer também! Foi legal tu me fazeres lembrar sobre aqueles tempos.
Nunca fiz a viagem Rio Grande-Pelotas, nem Pelotas-Rio Grande. Fiz duas vezes trajeto parecido, as duas naquela vez que dei uma volta pelo Rio Grande do Sul e passei no Cassino. Uma vez sai de Pinheiro Machado, na estrada que vai para Bagé, e fui até o Cassino. Esta viagem demorou umas oito horas, se não me falha a memória. Na outra vez, sai do Cassino e fui até o Cristal. Esta demorou mais, umas doze horas. Não sei quanto tempo deu do trevo até Pelotas, nem numa nem noutra viagem, trecho que seria uma referência melhor. Mas mesmo se lembrasse, não acho que seria de grande ajuda para ti este número.
Nesta viagem até o Cristal, do Cassino até embaixo da ponte do Rio Camaquã onde acampei, meu hodômetro parcial marcou 177km. Este foi o maior tirambaço que eu fiz em um dia, lembro bem porque no outro dia eu fiz exatamente mais 177km até a casa da mãe, lá na Tristeza, em mais doze horas. Este foi o máximo que meu corpo, treinado e com 22 anos de idade fez: 354km em dois dias. Lá na Europa, passei um mês inteiro viajando todos os dias. Eu já olhava o mapa calculando o próximo camping numa distância que desse para fazer num dia de pedalada. O meu "normal", viajando todos os dias, era uns 120km por dia numas oito horas, a média era esta. Teve dias que fiz 70km e outros 150km.
Podem-se fazer algumas conjecturas a partir destes números. Se eu fiz, duas vezes seguidas, 177km em doze horas, alguém pode achar que viajar de bici significa andar a quase 15km por hora. Assim, se Pelotas tem uns 65 km de Rio Grande, a viagem de bici entre as duas cidades daria em torno de 4 horas e 20 minutos. Pode até dar, mas seria muita coincidência.
O leigo sempre anseia por uma informação precisa ou, pelo menos, alguma idéia guia. A pergunta que eu mais ouvi quando trabalhava na oficina foi: qual a melhor bicicleta que existe? Depende... Para quem é a bici? Para que ela vai ser usada? A melhor bicicleta do mundo é aquela que é usada. Esta resposta era frustrante para eles. Talvez também te frustres agora com as minhas respostas. Viajar de bicicleta não é como viajar de carro. O tempo de viagem depende de uma série de fatores, não é só a variável distância que o determina. São fatores relacionados ao relevo, temperatura, umidade do ar, direção e intensidade do vento, pressão atmosférica, condições da bicicleta e dos pneus, carga transportada, se quem viaja está sozinho ou acompanhado, experiência do ciclista e, claro, principalmente, o estado do corpo/mente do ciclista.
Antônio Damásio, no seu livro o Erro de Descartes, fala uma coisa que qualquer ciclista ou maratonista já intuiu em algum momento da vida. O corpo é a mente e a mente é o corpo. É uma coisa só, indissociável. Tudo que se pensa é produto do estado do corpo em relação ao meio ambiente em que se encontra e relacionando cada e todo instante com TODA sua vida pregressa. No contexto desta carta que te escrevo hoje, isto significa que não se pode dizer quanto um cara consegue fazer normalmente com uma bicicleta. Varia muito, de cinco a sessenta quilômetros por hora. Um mililitro a menos de água no corpo, algum rangido na bicicleta ou uma brisa de frente e o teu cérebro pode te mandar uma mensagem de desânimo, tristeza, desesperança, muitas memórias ruins, nenhum lugar vai te parecer bonito, tu vais lutar para manter a bicicleta andando. Todos os teus pensamentos vão ser sobre como acabar com aquele sofrimento, tu vais te perguntar repetida e insistentemente: quem é que teve esta idéia estúpida de andar de bicicleta hoje? Por outro lado, um milímetro de mercúrio a menos na pressão atmosférica ou a mais nos pneus, uma raspa de banana sobrando no fígado, a sombra de uma árvore a beira do caminho e o teu cérebro pode te premiar com muito ânimo, alegria, esperança, planos para o futuro. Tu te sentes tão bem que pedalas mais forte e a paisagem te parece maravilhosa, ainda que seja um lugar que tu já viste dezenas de vezes antes.
Durante uma viagem de bicicleta tu vais passear da entusiasmada euforia à depressão profunda no mesmo dia, às vezes na mesma hora. Se a viagem tiver mais de um dia tu terás dias bons e dias ruins. E se durar semanas, terás semanas boas e semanas ruins. Andar de bicicleta ou ficar na posição de lótus, correr, nadar, caminhar, enfim, fazer atividade física SOZINHO por um longo tempo, obriga o teu cérebro a meditar. A respiração, a circulação, a digestão, todo teu corpo se adapta a nova exigência. O corpo passa a gerir com muito cuidado os recursos energéticos disponíveis. Nada pode ser desperdiçado e o supérfluo tem de ser descartado. O que ocorre é que passas a pensar coisas que de outra forma (inativo num meio ambiente com recursos energéticos abundantes) não pensarias. O mundo passa a ser visto com outros olhos.
Naquele tempo que eu viajava de bici, finalmente respondendo objetivamente as tuas perguntas, acho que eu levaria umas duas horas de Pelotas a Rio Grande, mesmo carregado. Hoje umas três, descarregado, com uma bici boa e vento a favor, claro. É que eu já sou mais velho, bem mais pesado, e bem menos treinado, apesar de ser bem mais experiente. Naquele tempo eu fazia ("normalmente") uns 27km por hora, hoje uns 20, um atleta olímpico faz uns 40 e uma velinha idosa uns 10. Aqui que acho que vais te frustrar com minhas respostas: não interessa o tempo, um tempo bom é aquele que é realmente feito! O gostoso é o processo e não o fim.
Se vais andar de bicicleta, esquece o tempo! Vai e anda. Leva bastante água (gatorade é bom) e frutas e para de hora em hora ou quando tiveres um pensamento ruim.

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