sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Reflexões Hospitalares
Apaguei a luz e me ajeitei no leito para dormir. Olhei para noite urbana iluminada da Ipiranga lá embaixo, um carro passa espiando as esquinas. A chuva cai com toda calma do mundo e respinga os vidros pacientemente. Ouço a porta abrir devagar e vejo Miguelina:
- Oi, Miguelina.
Ela me vê com os olhos estatelados para ela, apesar de ser uma da madruga.
- Ah, eu só passei para ver se estava tudo bem contigo.
- Tô bem, obrigado!
Ela fecha novamente a porta e fico só no escuro com meus pensamentos. O quarto é enorme, de três leitos, mas está quase vazio: Um paciente teve alta e outro foi fazer um "procedimento". Só ficou eu a admirar o teto e os cantos das cortinas na penunbra. Depois da agitação do dia, de vários exames, duas noites seguidas na UTI com as luzes ligadas e os gemidos de dor, agulhadas por todos os lados, oxigênio e aparelhos monitorando minhas funções vitais, fico finalmente em paz, livre para devaneios. Que sorte tive que minha irmã Verônica e meu cunhado Flávio estavam perto com seu carro e ouviram meu pedido de socorro. Que azar que tive de sofrer uma complicação pós-operatória tardia, mais de vinte dias depois da cirurgia. Que sorte tive de estar em Porto Alegre, próximo a bons hospitais e com parentes de férias. Que azar que tive de não perceber que aquelas dorzinhas na sexta iam se amplificar em tal magnitude. Uma pessoa religiosa se deliciaria tentando encontrar mensagens cifradas: É deus! Não era hora!
Os pensamentos começam a fluir lentos, mas em grande volume. A notícia da morte do líder da banda de punkrock Cascavelettes, minha preferida na adolescência, me tocou. Ele tinha a minha idade e frequentava uma escola próxima a minha no segundo grau. Chegou a hora de nossa geração passar o bastão às seguintes? Faço a contabilidade das mortes recentes: Primeiro foi o Eduardo Schaan, de câncer, aos 37 anos. Depois Felipão, do coração, aos 40. A única prevista e esperada com resignação foi da Bebel, aos 74, de alzheimer. A mais recente ainda estava doendo, Tio Luiz, aos 63, também do coração. Dois ateus e dois cristãos. Todos meus grandes amigos já morreram. Eu sobrevivi a todos e agora a isso! Mas até quando? Todo mundo morre, não é de se espantar, é só mais um momento da vida. A morte do indivíduo, a parte, faz bem para a sobrevivência da espécie, o todo.
Não tenho sono, talvez sejam os medicamentos que antes me faziam dormir, agora me deixam alerta. Abro mais a torneira do fluxo de pensamentos que agora jorram madrugada a dentro! Me passa na frente dos olhos vários rostos, momentos, objetos, conceitos, sonhos, lugares. Não sei porque emergem poética, estética, dialética, ética. O que é ética? A resposta atual seria algo como: a ciência que estuda o que é moralmente virtuoso. Mas, quando foi inventada, a palavra tinha outro significado. Na Grécia antiga, ética era uma vida bem vivida, em alinhamento com a perfeição e harmonia cósmica. Curioso, não é? Até o significado das palavras mudam ao longo do tempo. Faço uma escrupulosa avaliação mental da minha vida até aqui para responder a pergunta filosófica grega fundamental: Minha vida valeu a pena? Será que minha existência foi ética no sentido original? Por muito pouco não morri, mas se tivesse morrido sábado? Já tinha construído minha trajetória como um exemplo de estética ou poética? Vivi de forma virtuosa? No senso comum, para se ter uma vida bem vivida basta escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Sim, eu tive um filho para perpetuar os meus genes, mas não o criei. Plantei várias árvores, para perpetuar o meio ambiente, mas também não as cuidei ou as vi crescer. Escrevi já vários textos, se juntá-los por assuntos já teria vários livros escritos, mas nunca os publiquei para perpetuar a cultura ou tentar modificá-la.
Uma moto barulhenta passa lá embaixo na avenida vazia, Renato Russo me vem a mente com sua música urbana: não há mentiras nem verdades aqui. O mundo, indiferente aos meus esforços mentais, segue girando igual. A equação: Mundo +/- eu = mundo, é implacável. A Miguelina trabalha, alguns fazem procedimentos cirurgícos, muitos dormem, outros morrem. Assisto um filme filosófico no vazio silencioso e fracamente iluminado pela cidade no teto do quarto. Já viajei para muitos países, já aprendi muitas línguas, já convivi com muitas religiões, já trabalhei em muitos ofícios, já habitei em diferentes culturas. Já tive algumas paixões, muitos amores, fiz muito sexo, dei muitas alegrias, fiz algumas mulheres chorarem. O que falta fazer ainda? Falta algo? Já estou pronto para sumir, me transformar em coco de bactéria, destino comum a todos os seres orgânicos do planeta? Ou estou pronto para oferecer a humanidade uma grande obra, como poucos conseguiram? Tenho ainda alguma ambição ou já chega?
Sei que além da Miguelina, tem uma multidão trabalhando àquelas horas no Ernesto. Lembrei do tempo que trabalhei em Esteio, virando turno de madrugada, regulando injetoras de plástico que faziam potinhos para pessoas que eu nunca veria. Nossa, cada coisa que já vivi! Começo a lembrar de mulheres que tive. Como fui feliz com algumas. Penso naquelas que não tive e como as desejei.
Até aqui estava tranquilo, com os olhos abertos mas mirando o nada dos cantos. Mas com as gurias, me emocionei. Da neblina da memória aparece um papelzinho amarelado, escrito à mão, que minha irmã Betânia mantinha num painel de cortiça, ao lado de fotos, no seu quarto. Era um trecho de um livro de Caio Fernando de Abreu:
"Seria sem sentido chorar, então chorei, enquanto a chuva caia lá fora, porque estava tão sozinho que o melhor a fazer era qualquer coisa sem sentido."
Vivo só, fico bem só, nunca me sinto solitário. Ermitão, nunca escuto música nem tenho "muletas metafísicas" como um deus ou esperança no paraíso. Não busco o sentido da vida, até porque não tem sentido nenhum mesmo, nem luto por uma sociedade sem classes. Ser um cidadão solteiro não me incomoda, mas talvez seja exatamente isso que ainda falta. Acho que talvez minha vida valha mais a pena se eu conseguir alguém para amar. Uma parceria para dividir idéias, sonhos, planos, para envelhecer junto. Já que sobrevivi, talvez possa usar o tempo que me resta de ser vivo para formar um par. Minha vida valeu a pena, mas, agora que tive esse prolongamento, porque não ampliar minha ética? Acho que vou mirar nisso agora!
Fecho os olhos e durmo, feliz com as reflexões e reanimado. Pouco antes das seis horas, o dia clariando, Miguelina entra no quarto e alegremente exclama:
- Bom dia! Nós temos que fazer duas injeções de anti-coagulante!

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