quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Mundo redondo
Assim que me formei Técnico em Mecânica no Parobezão, dei a largada para uma viagem que sonhava desde piá: Eu iria conhecer o mundo sem dia para voltar. Falei com meu pai se ele me ajuaria na empreitada, mas não, ele discordava do momento, achava que eu deveria terminar a faculdade de Engenharia Mecânica primeiro. Bueno, eu tinha vinte anos e ainda faltava uns quatro para terminar o curso, aquilo para mim era uma eternidade. Mesmo argumentando que eu só iria trancar por dois anos a matrícula, não colou, então tive que partir para a produção do dinheiro eu mesmo. Como agora eu tinha um diploma, saí a cata de emprego e logo consegui, ganhava 3 salários mínimos. Naquela época, um salário mínimo eram o equivalente a 35 dólares, hoje isso equivaleria a algo como 140 reais. Parece absurdo, mas era assim mesmo, a pobreza grassava no país. Um senador do PT, Paulo Paim, tinha uma luta que varou décadas: que o salário mínimo fosse pelo menos 100 dólares, algo como 400 reais atualmente. Era taxado de maluco! Bueno, com meu diplominha de técnico, eu pulei vários degraus na competição do mercado e era remunerado igual a alguns mecânicos velhos nas fábricas, com muita experência, apesar de eu não conhecer nada de manutenção. Fiquei uns tempos ganhando 3 salários e trabalhando longe de casa, tinha que levantar às 3:15 da madrugada para chegar em esteio às 6:00. Felizmente,consegui outro emprego em poucos meses, bem mais perto de casa e ganhando o dobro, quase seis salários, foi a glória. Eu levantava às 7:00 e andava de bicicleta 1,5km para pegar as 8:00 da manhã, era ótimo. Quase todo meu salário eu guardava integralmente, ainda morava com meus pais e não tinha plano nenhum de comprar carro ou moto, queria viajar. Meus companheiros de trabalho eram muito ignorantes em termos acadêmicos, mas muito sábios em termos mecânicos. Apesar de rirem muito da minha ignorânica até para como bater o ponto, aceitavam sem reclamar que meu salário era até maior que o deles. Reconheciam meu diploma como algo especial, era raro alguém ter qualquer formação naqueles tempos. A maioria da peonada das fábricas que trabalhei, tinha um histórico escolar até o meio do primeiro grau e começaram a trabalhar com 12, 13 ou 14 anos. Eu, que só precisei começar a trabalhar depois dos 18 e terminei todo o segudo grau, era considerado um almofadinha. Nos momentos de ócio depois do almoço, ficávamos numa roda a sombra das árvores conversando, eles tinham muita curiosidade sobre minha vida e admiravam meus conhecimentos. Eles não sabiam, mas eu admirava o conhecimento deles. Ficava bem quieto fazendo o meu trabalho, da melhor forma que podia, mas para mim, tudo na prática era novidade, até mesmo coisa simples, como o tamanho das chaves de boca. Eu havia aprendido na salas de aulas tudo em milímetros, mas no chão de fábrica, era tudo em polegadas. Me pediam uma allen 3/16, eu ficava olhando todas as chaves allen até achar a que tivesse escrito 3/16 no cabo. Nas duas fábricas que trabalhei, as máquinas eram extrusoras ou injetoras de plástico, nenhuma das duas eu havia estudado no colégio. Para mim, acostumado com cães, aquelas máquinas eram ornitoríncos, eu não sabia nem ligar. O único que percebia minha ignorância, era minha dupla de trabalho, um rapaz da minha idade, mas que já era até pai. Como todos, teve uma vida sofrida, um olho furado e se considerava bem sucedido já que tinha aquele bom emprego. Esse guri era paciente comigo, me ensinava tudo que sabia do trabalho com alegria e, ao decidir quem ia fazer o que quando chegávamos na máquina a ser revisada, deixava eu escolher primeiro dizendo: 
-Qualquer prazer me diverte!
Era uma piadinha engraçada, porque nenhuma tarefa era prazerosa. Geralmente, nossa tarefa era de manutenção preventiva, troca de óleo e filtros. Tínhamos que entrar dentro da máquina, tão grande que era, filtrar todo óleo (de quinhentos a mil litros de óleo quente), limpar o tanque por dentro, engraxar rolamentos, trocar os filtros e alguma outra peça que o fabricante determinava que era hora. Ficávamos imundos e ensebados ao final do dia, com óleo e graxa até nos cabelos. Isso tudo no meio de outras máquinas funcionando a todo vapor, então o barulho era sempre ensurdecedor. Nenhuma tarefa era prazerosa! Quando terminássemos, podiámos voltar para o setor de manutenção para guardar as ferramentas, mas geralmente dava para fazer uma máquina pela manhã e outra a tarde. Para evitar que o chefe nos desse outra tarefa, ficávamos embromando na máquina até a hora do almoço ou da saída. Infelizmente, não lembro do nome desse rapaz que trabalhava comigo, o chamávamos por seu apelido de "Caolho". Ele aproveitava esse tempo de embrometion para me perguntar coisas de conhecimentos gerais, tinha uma sede por saber que não pode satisfazer na infância. 
-Mas, quando falam esse negócio de estado... o que é estado? Canoas é do nosso estado? Eu já fui a Canoas! Tá, mas daí o coração bate e funciona como uma bomba de óleo então? E o filtro do corpo, tem filtro o corpo?
O rapaz me olhava embevecido quando percebia que eu sabia as respostas para suas dúvidas simples, eu funcionava para ele como um google. Eu, escutava silenciosa e respeitosamente a pergunta e respondia da melhor forma que podia seus questionamentos e nunca debochei de nenhuma, ainda se me parecesse muito tola. Percebendo isso, ele confiava muito em mim. Tinhámos essa cumplicidade, um não debochava da ignorância do outro e nem revelava para os colegas nos momentos de grupo. Aos poucos, todos do setor de manutenção começaram a me usar como oráculo, meu colega me oferecia como enciclopédia ambulante e grátis. Quando algum ficava meio receoso de ter sua ignorância ridicularizada, perguntava primeiro para meu colega caolho. Ele conduzia o peão até mim e dizia: 
-Pode perguntar, não fica com vergonha. 
Sério, não estou inventando isso ou brincando, acontecia assim mesmo. Eu, com vinte anos, era o doutor sabe tudo na fábrica da Termolar. Numa ocasião, embaixo das árvores depois do almoço, nosso grupo conversava e ria de tudo. Surgiu o assunto, não me pergunte como, de como seria a Terra. Deixei rolar as teorias, surgiram umas quatro ou cinco, então fazia algumas perguntas para reflexão. Cada um apresentou sua proposta de forma da Terra:
-Acho que é meio boleada, daí uma hora acaba! 
-Tá, mas daí, quando acaba, cai para onde? 
-Cai para o inferno!!
-Mas assim o mar ia cair todo lá!
O papo era sério, ninguém mais ria das propostas a reflexão era desafiante. Brotavam outras idéias:
-Não, cara, não é boleada nada, é chata.
-Tá, mas daí, acaba onde?
-Não acaba, tu vai, vai, vai e... vai!!!
Não houve acordo ainda. A infinitude não foi aceita. Pena que eu não anotei na hora, não vou lembrar de todas as teorias que surgiram.
-Não, uma hora acaba, mas não sei onde. Mas acho que não cai para o inferno nada!
-Cai onde, então? Cai no espaço? Onde estão as estrelas?
-Não, as estrelas estão em cima, ninguém cai para cima. 
Esse falou isso já desconfiando de minha sabedoria. Eu perguntei:
-Vai até onde o mundo então? Vai até o Rio de Janeiro? Até Brasília? Qual cidade está na beira do mundo?
Eu tentando manter a fleuma, mas minha serenidade e questionamentos difíceis começaram a soar arrogantes, eles queriam respostas e não perguntas.
-Ah, não sei, mas uma hora acaba. Acho que o cara não cai, acho que dá para fazer a volta e voltar.
Quando se esgotaram as idéias e alguns já se impacientavam comigo, resolvi oferecer minha solução:
-A Terra é redonda, como uma bola, se tu começares a caminhar aqui agora e fores sempre em linha reta para frente, tu dás a volta no planeta e uma hora tu chegas aqui de novo. Tu nunca cais, fica sempre grudado na bola, atraído pela gravidade!
A minha fala causou gostosas gargalhadas e foi imediatamente eleita como a mais idiota de todas!! Não convenci ninguém. Várias piadas, comentários e mais uma saraivada de perguntas fizeram sobre isso:
-A terra é uma bola!!! Deus vai fazer balãozinho com nós!!!
-Ah, tá, daí tu caminha lá embaixo da bola e não cai?
-A bola está em cima do que?
-Se fosse redonda não dava nem para construir uma casa reta!
Até meu fiel companheiro caolho se sentiu autorizado a rir:
-Ah, Tiago, desculpe, mas eu não vou sair daqui caminhando agora e amanhã vou estar te coxando por trás!!!
Esse momento aconteceu há uns 27 anos atrás. Por sorte e por muito trabalho de muita gente, acredito que hoje a escolaridade e o conhecimento estão bem mais democráticos no Brasil e mesmo peões de fábrica teriam como explicar coisas assim. 
Felizmente o mundo é redondo e dá voltas! No fim, consegui viajar, não dei a volta no mundo, nem posso dizer que o conheço, mas eu posso dizer que tentei chegar a beirada para ver se cai.

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