sábado, 12 de dezembro de 2015

Em Florianópolis, trabalhei dez anos na Educação Infantil. Era assim que cumprimentava as crianças na creche: E aí amigo/a fulano/a!
Me vi obrigado a desenvolver este método de cumprimento porque às vezes me dava um branco do nome de alguma criança, principalmente se encontrasse com elas na rua, então, para não ficar chato com a mãe da criaturinha, dizia somente: E aí amigo! Assim elas não estranhavam, nem as mães, nem as crianças que depois contavam orgulhosas se exibindo para as outras: - Vi o Tiago na Rua. Aquilo era um status!
Quando chegava numa sala da creche sempre cumprimentava dizendo: Oi pessoal! Os menores me respondiam: Oipessoal! Como se fosse uma palavra só, apesar de eu ser só um a chegar à sala. Na rua, no pátio da creche ou nos corredores, é engraçado, elas me viam e diziam: Oipessoal!
Uma ocasião fui viajar com meu amigo Felipão, que legal foi aquele nosso passeio em Caraguatatuba. Fomos convidados a ajudar a consertar um veleiro enorme, em troca ganharíamos uma velejada no mar. Mas nada deu certo no tal do barco e, quando nós vimos que não iríamos velejar porra nenhuma, nossa vontade de serrar parafusos e lavar o convés zerou instantaneamente! Na primeira tarde de desapontamento, não sabíamos o que fazer, brincamos um pouquinho com um bote inflável que tinha por ali, redemunhamos na sombra das árvores outro pouco, tiramos algumas fotos, finalmente deitamos no teto da cabine do veleiro como lagartos ao sol do final da tarde esperando o tédio passar. Naquele momento mágico de ócio, passou um senhor negro, vagarosamente, em pé numa canoa de um pau só levada pela correnteza daquele córrego em que estávamos presos. Ele ia só cutucando o fundo, lá de vez em quando, com uma longa taquara para dirigir a embarcação. O cara não tinha a menor intenção de acelerar aquela descida ao mar. Depois que a canoa contornou a curva do riacho e sumiu da nossa vista, meu amigo Felipão, sem levantar a cabeça acomodada ao pé do mastro, me perguntou:
- Viu a canoa?
Depois de algum tempo, eu respondi:
- Vi... ... ... Legal né?
Ele esperou um pouquinho para dizer também:
- É...
Nosso papo era ao ritmo da canoa: Intenso! Vertiginoso! Passado mais alguns momentos, ele enunciou a frase que se tornaria célebre, talvez só comparável à teoria da relatividade geral de 1905 para o engrandecimento do conhecimento da humanidade:
- Tiago, se a gente ficar muito tempo aqui nesta vida ribeirinha, nós vamos acabar virando um ribeirinho!
Minha vida, depois daquele momento, asseguro, nunca mais foi a mesma. Futuramente vou aparecer nos livros de filosofia assim como Gláucon ou Aristófanes, aqueles caras que Platão e Sócrates conversavam nos seus diálogos, eles só, ou não entendiam e pediam mais explicações, ou concordavam. Eles pareciam o Robin, do Batman:
- Santa obviedade, como não tinha me dado conta disto ainda!
Minhas falas nos "Diálogos com Felipão" serão sempre algo como:
- Por Zeus, é verdade!
Eu então, se ficar muito tempo trabalhando só com mulheres nas creches e escolas nas quais trabalho, vou acabar virando uma mulher! Em parte é bom, elas tem qualidades maravilhosas. Não, não tô falando só de peito e bunda. Se fosse mulher eu seria lésbica, eu acho, e ia passar o dia mexendo nas minhas tetas. Tô falando de outras qualidades que admiro, que eu não tenho. Atenção a muitos estímulos ao mesmo tempo, por exemplo. Minha irmã Verônica fica sentada no sofá tricotando, falando ao telefone segurado pelo ombro, assistindo televisão, e ainda me dando ordens com os olhos. Ela não errava nem um ponto, não perdia uma cena da novela, entendia todas as fofocas ao telefone e ainda me convencia a obedecer a ordem ocular. Eu só consigo falar ao telefone. Se alguém entrar na sala que estou falando ao telefone, já não me concentro na conversa, fico lento. Acho que meu barramento é pequeno demais na minha placa mãe: o processador não consegue trocar muita coisa com a memória RAM. E, se esta pessoa que entrou na sala, me perguntar alguma coisa, aí sim que tranca meu "brain windows". Eu começo a repetir ããã... ããã... ããã... e não respondo mais nem a pessoa, nem ao telefone. Para destrancar, tenho que fechar um dos aplicativos em uso: ou a pessoa desiste e sai da sala ou eu desisto e desligo o telefone. É por isto que só tem mulher em creche e homem em obra. Os homens são maiores e mais fortes que as mulheres, não é machismo, é fato biológico, é genético. Ninguém contrata mulher para obra porque elas iriam produzir um quarto do que um homem produziria no mesmo tempo. Mas, se elas insistirem em trabalhar em obra, o esforço as vai treinando e aos poucos deixando elas mais fortes, até acontece de se equipararem a um homem (pequeno e novato na profissão de obreiro, claro). A diferença é biológica, não tem como negar! E é por isto também que só tem mulher em creche, as mulheres conseguem fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Vou te dar um exemplo para te visualizar. Dia destes uma auxiliar de sala faltou e a professora da sala foi à secretaria ver quem iria ficar com as crianças até os pais chegarem. Eu, então, fiquei encarregado de colocar um DVD para as crianças assistirem, já que era cinco da tarde e tanto eu como a professora de sala iríamos embora. Enquanto tentava encaixar os fios certos nos buracos certos atrás da TV e do aparelho de DVD, eu tinha que cuidar para que as vinte crianças não brigassem, não subissem nas minhas costas quando me agachasse, não fugissem pelas quatro janelas ou pelas duas portas da sala, não abrissem as torneiras do banheiro, não levassem embora a capa do DVD corredor afora, não metessem os dedos na tomada, não tirassem novamente os brinquedos da prateleira, não apalpassem o meu saco, não escrevessem a canetinha nas paredes ou nos braços, não recortassem as cortinas ou os cabelos do colega, não esparramassem os legos pelo chão, não enfiassem massinha na fechadura ou na orelha ou ouvido do outro, não pintassem as cadeiras e suas mochilas com tempera e não imitassem seus pais fazendo sexo no chão. E eu tinha que fazer tudo isto sempre coordenando falas didáticas e apertando os botões certos nos aparelhos para encontrar o começo do Vidas de Inseto em português. Se tu gravares trinta segundos e transcreveres só as minhas falas depois, sairia mais ou menos assim:
- Só um pouquinho, Vitor, assim o Tiago não consegue por o vídeo.
- Não Matheus, deixa que o Tiago põe na tomada, ó quei? Tu podes levar um choque.
- Ó, agora todo mundo senta porque vai começar!
- Wallace! Não enfia o dedo no olho da Duda porque dói nela, depois ela vai chorar... Ó, viu? Pede desculpa agora.
- Jéssica, se tu vais comer esta bolacha que tu trouxeste vais ter que dar uma para todo mundo, viu?
- Laurinha, não pega no meu pênis por que o Tiago não quer, tá?
- Vitória Soares, agora não é para sair para o parque, tá bom, tua vovó já deve estar chegando.
- Quer fazer xixi de novo, Gabi, então vai logo no banheiro, se não, depois, tu fazes xixi nas calças e não tem mais roupas limpas para trocar, tu já sujaste no barro hoje a única que trouxeste.
- Põe os carrinhos na prateleira, tá Kauê, agora a gente já guardou os brinquedos.
- Ó, o pai da Emelyn, chegou! Vai pegar tua mochila, Emelyn, não esquece de pegar tua agenda na cesta.
- Olha, as formigas estão com medo!
- Jéssica! Eu já falei para ti: Vamos guardar os lápis agora, nós já acabamos esta atividade, tá bem?
E assim ia, todos os dias. Este esforço incrível que faço, este stress fantástico, tem aumentado minha habilidade de falar e atender a mais de um estímulo tremendamente, mas ainda é um quarto de qualquer mulher de creche. É biológico, não adianta. Mas eu me sinto mais capaz, muito melhor que era, para este tipo de meio ambiente, claro. Tenho que me concentrar muito, mas consigo.
Creche é o melhor lugar para ver o que é biológico, inato, e o que é cultural, aprendido no meio. As crianças muito pequenas ainda não tiveram tempo de acesso ao meio, à cultura. Não se pode alegar que o Pedro, de sete meses, se interessa mais por carrinho porque ele viu mais homens andando de carro, então seria cultural. Além de ele morar sozinho com a mãe, passa a maior parte do tempo dormindo quando vai para casa. Não dá para se dizer que a Maria Eduarda, de cinco anos, é lésbica porque só brincou com meninos na infância. Na sala dela só tem dois meninos e ela insiste, desde pequena, em brincar de lutinha, carrinhos e subir em árvores com só os dois, nem dá bola para as outras 17 meninas da sala e suas conversinhas. Cheguei a conclusão, observando, registrando e pesquisando, que é tudo biológico. TUDO!
Eu estou bem mais tagarela do que era, graças ao convívio com elas, meu treinamento. Mas eu já era bastante tagarela, só estou mais treinado. Um musculoso da falação.
Sabe aquelas mulheres que reclamam do marido porque ele mete o nariz na TV e não ouve mais nada. Elas falam coisas para eles, contam histórias, comentam as compras do super e as roupas da vizinha, fofocam da professora de Inglês, finalmente perguntam algo:
- Tu achas que a gente paga o aparelho nos dentes da Manoela este mês ou espera o décimo?
Diante do silêncio, ou de uma resposta simples como:
- Tá.
Elas percebem que ele não ouviu nada, se desesperam... "Ele não me dá bola, nem me ouve!" Minha namorada me reclamava exatamente isto. Eu explicava: desespero inútil. Eu não posso ser diferente, sou homem, é inato. Nasci assim, não consigo mesmo me esforçando muito, é biológico, é genético. Até o Orangotango come a banana sozinho, longe do grupo, com olhar distante. Prestar atenção àquela algazarra de fêmeas e filhotes exige um esforço que ele não consegue fazer toda hora. E nem deve, se fizesse ameaçaria a vida da prole.
Meu amigo Felipão uma vez passou três meses surfando em Imbé. Quando voltou, liguei para ele e:
"-Calma, Tiago, fala devagar porque neste tempo que fiquei lá meu cérebro virou uma craca!"
O sistema nervoso tem condições de ser uma craca, um ribeirinho, ou um programador na Suíça. Ele vem programado para se adaptar ao meio em que se encontra, mas também para procurar coisinha melhor para aumentar as chances de perpetuar a vida. O que achas disso?

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