quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Barulho de madeira
Trabalhei em vários lugares nos dois anos que vivi na Europa. A proposta era viajar e conhecer, então não esquentava cadeira e logo mudava para outra parte qualquer. Países pequenos, em poucos quilômetros eu podia trocar de língua, dinheiro e cultura a hora que estivesse satisfeito com o que já tinha aprendido do lugar. O veículo que escolhi para a minha jornada foi a bicicleta. Rápida, barata, culturalmente aceita e sem nenhuma burocracia, além da vantagem de poder cruzar as fronteiras onde quisesse sem levantar suspeitas. Em dois anos eu rodei uns 7000km de norte a sul da Europa, de Amsterdam, na Holanda, até Genova, na Itália, onde embarquei num navio que me trouxe de volta ao Brasil.
Passei o inverno em Paris e quando a primavera chegou decidi que era hora de partir. Muita gente me desaconselhou:
Está muito frio ainda, espera o verão.
Não, minha ansiosa juventude não me permitia esperar e eu tinha razão. Me armei com roupas de frio para ciclismo e fui. Saí de Paris em direção ao sul, o objetivo era Mirmande, um vilarejo medieval na região de Fontaine-de-Vaucluse que me juraram eu encontraria trabalho nas colheitas de cereja, pêssego ou uva. Eu não sabia, nunca havia estudado o relevo do interior da França, óbvio. No mapa parecia planinho... Mas atravessei o Massif Central francês, um lugar alto e montanhoso, mais ou menos como a nossa serra gaúcha. O problema nem era subir a montanha de bicicleta carregada, nessa época eu era magro e hipertreinado. O grande problema era o frio. Agora entendo meus conselheiros de Paris, seria prudente esperar junho. Mas, mesmo agora, acho que agi bem! Se não for quando jovem, quando você fará esse tipo de coisa? A noite eu vestia todas as roupas que tinha e colocava o casacão embaixo do saco de dormir, mas ainda assim, cagava de frio. Eu tinha um guia de camping e planejava a jornada diária para entorno de 120km. Achava o vilarejo no mapa e lá me ia feliz como um passarinho migratório. Nada se compara a felicidade da liberdade que sentia nesses momentos de deslocamento. Eu era poderoso, livre, dono do meu destino!! Levava comigo tudo que me era necessário a vida: casa, comida, roupas, livros, veículo, ferramentas, cozinha completa. Chegava ao destino, pagava uma noite do camping que era super baratinho, montava a barraca, cozinhava numa espiriteira a álcool, comia, tomava banho e dormia. Com o raiar do dia recolhia tudo e seguia viagem. Eram sempre campings muito simples em lugarejos de fama nenhuma, o banho era pago separado em todos, então eu matava muitos!
Lá pelas tantas cheguei a Saint-Jean-la-Bussière. Como de costume, cheguei exausto, no meio da tarde, depois de uma dura escalada por estradinhas francesas. A pequena cidade estava animada, mas absolutamente silenciosa, na capelinha havia um casamento, então, muitos carros se acotovelavam inertes pelos acostamentos de grama esperando seus donos testemunharem a cerimônia. Todas as casas e a igreja eram da mesma cor, a cor da pedra que eram construídas, um cinza chumbo. Parei na "épicerie" para as compras do dia e já me informei da localização do camping. Descendo a estradinha que me levava lá, escutei os sinos selando a união e vi as pessoas sairem arrumadas da capela, entrando nos seus carros e partindo. Seguramente, umas três vezes o número da população local foi embora. O camping estava cadeado e vazio. Subi desanimado a estradinha de volta a vila e, por sorte, um camponês me viu e me orientou de longe, apontando com um garfo daqueles de mexer no feno:
Ela mora ali!
Agradeci e voltei para o lugar indicado muito abaixo do camping na estrada. A casa era amarela, diferente das outras, ao lado de uma estrebaria grande, também amarela. Tinha o telhado grosso, de quatro águas ingrimes, feito com uma fibra qualquer, numa ponta da cumeeira, uma chaminé denunciava fogo. Encosto a bicicleta ao lado da porta e percebo que as paredes devem ter um metro de espessura e parecem feitas de barro. A porta era de madeira maciça, com uma estranha tramela de ferro. Bati e esperei. Me inspeciono rapidamente para ver se estava apresentável, reparei que saía fumacinha de vapor de meu corpo quente, através das roupas, para aquele ar frio da serra. A tramela rangiu e a porta se abriu. Na minha frente agora, sorridente, estava um ser de contos de fada, uma senhora de uns cem anos, mais ou menos, metade de minha altura. Ela, toda faceira, me convidou para entrar. Ao entrar percebi que estava entrando no coração da França, na história da França, no âmago de um país medieval. A casa era incrível! Toda feita de grossas madeiras por dentro, um enorme fogão a lenha bem no centro da casa a aquecia por completo. O ar era espesso mas o cheiro era bom. A senhorinha me fez sentar numa mesa larga e me ofereceu café. Se os ingleses gostam de chá, os franceses adoram café (os dois países, aliás, consumindo os produtos de suas distantes colônias). Ela me perguntou amenidades, me olhava fascinada e conta que é o primeiro brasileiro que conhece. Percebo que meu francês está bom, aquela altura do campeonato. Se eu entendo aquela velhinha, aquela cultura francesa inteira, naquele grotão francês, compactada e ambulante naquele pequeno e ancião ser fabuloso, é porque meu francês está bom! A velha feliz com minha visita, me oferece um pão cheiroso que aceito com alegria e apetite. Pão francês nem sempre é o que se imagina aqui no Brasil. Ela percebe que gostei e põe uma colherada de geléia em cima de outra fatia. Fala sem parar e comenta do tempo atmosférico e daquele que passa tão rápido, do casamento que vi na capela e da casa que elogiei:
É muito antiga! Era de meu avô!
Sempre faminto e alimentado a miojos com salame, aquilo é um banquete, me distraí com o momento prazeroso, mas, de repente, começo a sentir calor e lembrei do porque estava ali. Perguntei sobre o camping e só agora ela entendia o motivo da minha visita. Entusiasmada, me explicou que eu era o primeiro cliente no ano! Fiquei surpreso, afinal, era maio! Depois, refletindo, me lembrei: a temporada de verão para os europeus começa só em junho. Ela me explicou detalhadamente todos os direitos e deveres do campista, eu paguei o exigido e então ela chamou alguém sem levantar a voz:
Jean Pierre!
Só aí percebi que não estávamos sós. Do teto da sala, que deveria ter no máximo dois metros de altura, seu avô deveria ser baixinho como ela, ouço os passos de alguém sobre aquelas largas e espessas tábuas. Ela para de falar e, como eu, fica saboreando o som de cada passo no andar de cima. O som lento, compassado e grave, lá e cá algum rangido de madeira. Descendo a escada no fundo da sala escura, apareceu um rapaz alto e louro, com olhos muito azuis, ela deu instruções e o guri saiu comigo da casa, obviamente contrariado. Me despedi da velhinha e segui o guri empurrando lomba acima a bicicleta. Acho que ele escutou toda nossa conversa, tal a facilidade que escutamos seus passos na madeira. Acho também que ele já tinha visto alguns brasileiros, pois não tinha nem um décimo do entusiasmo de sua... sei lá: avó? Bisavó ou tataravó...
Uma vez contei animado essa história para uma namorada. Ela não gostou do relato, achou enfadonho e me reclamou:
É isso? Não tem nem alguma coisa engraçada no fim?
Acabou o namoro.
Vinte e cinco anos depois, construí minha própria casinha de madeira, claro, bem diferente daquela da velhinha de Saint-Jean-la-Bussière. Todas as tábuas da minha casinha foi eu mesmo que fiz quando trabalhei na serraria, assim como fez, imagino, o avô da velhinha. E claro, considere que as minhas tábuas tem um vinte ávos, mais ou menos, da espessura daquelas da casa francesa. Mas, adivinhe: cada vez que caminho pela casa, o som que faz as tábuas do chão me remetem àquele momento do Massif Central e a lembrança me alegra. Por favor, não vá me reclamar que faltou graça na história!! 

Um comentário:

  1. Gostei do relato, para mim foi uma experiência "sensorial"...senti o frio, o calor da casa quentinha e os aromas!

    ResponderExcluir