As enchentes no Rio Grande do Sul, os ribeirinhos e sua fé nos ensinamentos
das aulas da Educação Física escolar
A cena é comum. Você já deve ter visto na televisão porque é onipresente (como um deus): em algum esporte, qualquer um, um jogador dá um encontrão no outro e o derruba no chão, o juiz paralisa a partida e marca falta a favor do agredido, o agressor então retorna e ajuda o adversário que ele acabou de derrubar a se levantar. Agora é que vem a parte que me chama a atenção: o narrador da partida sempre elogia o ato do transgressor da regra que além de acatar a decisão do árbitro, sua obrigação, teria tido atitude nobre, pois ajuda o adversário a se recompor e voltar a participar da disputa o colocando em pé e isso não é obrigatório aos participantes do jogo.
O espectador desatento nem percebe, mas aqui houve uma doutrinação religiosa abjeta. O narrador, obviamente, induz os ouvintes a acreditar, com pura fé e, portanto, sem questionamentos, que aquilo apresentado é normal, natural e lindo. Se narra como fato da vida que agir como um esportista não só é correto, como altruísta, justo e moralmente sofisticado. Se exibe, geralmente em horário nobre, na televisão aberta, acessível a todos como opção de entretenimento, num programa cheio de comentários elogiosos, os esportes: atividade que põe UNS CONTRA OS OUTROS como regra. É importante que os objetivos de uns sejam DIAMETRALMENTE OPOSTOS aos dos outros. A atividade apresentada é COMPETITIVA, uns sempre buscam DERROTAR os outros. Se intui que um cidadão de bem deve jogar dentro das regras (dentro das quatro linhas, metáfora esportiva usada largamente por um conhecido ex-presidente brasileiro) e buscar vencer na vida.
Não é de se admirar que nossa sociedade se esforce para ensinar a todas as crianças da nação exatamente os valores ensinados pelos esportes: competições onde uns jogam contra os outros com o objetivo de derrotar os adversários. No Brasil as escolas são obrigatórias até se completar 18 anos e a maior sala de aula de qualquer uma delas é sempre o ginásio de esportes, o material didático mais caro é sempre o da Educação Física e as leis obrigam os professores da disciplina a ensinar esportes. Os professores testemunham diariamente o esforço das crianças em demonstrar como eles também podem chegar lá, naquele ideal mostrado na televisão. Vestem as caras camisetas de time de seus super herois, correm até ficar ofegantes e suados, entram em divididas como se ali estivesse sendo decidido seu sucesso ou fracasso na vida. Amaldiçoam e partem para briga com aqueles que por ventura vierem a atrapalhar que atinjam seus objetivos. Se apressam em levantar o adversário caído, exatamente como aprenderam na televisão, ainda que possuídos pelo ódio, para que o jogo continue. O importante é que o jogo continue.
Esse jogo onde pouquíssimos sobem no pódio e a maioria só assiste frustrada, o jogo da competição capitalista onde há um patrão para cada mil trabalhadores e todo mundo deve acreditar com fé nesse deus meritocrático que a vida justa é assim. Esse jogo social ensinado nas escolas através dos esportes só costuma parar se força maior obrigar. Na escola, a força maior é o professor que aparta a briga, no estádio o juiz da partida, na vida real, uma enchente devastadora. Aí é que todo mundo entende que é para dar a mão para aquele que caiu. Aprendemos na escola que só aí é que se deve parar e por o cara de pé. Mas é só para o jogo continuar. O importante é que o jogo continue, continue como sempre foi, sem mudança nenhuma na regra, só até o caído se recompor, para logo ser derrubado de novo.
Os flagelados da enchente são ribeirinhos, aqueles que vivem nas margens alagadiças dos rios, os pobres. Quem sofre nas enchentes são marginais, aqueles que moram nas beiras da sociedade. Eles moram ali não é à toa, é porque foi onde conseguiram se acomodar, as planícies de inundação são mais baratas para construir uma toca, afastadas das zonas nobres mais protegidas. Os bairros alagados da capital são aqueles negligenciados pelo poder público, onde operários humilhados pela vida lambem suas feridas: Navegantes, Humaitá, Farrapos, São Geraldo. Os bairros ribeirinhos, dos marginais, dos excluídos da sociedade, daqueles que nunca vão ao cinema ou ao teatro porque moram muito longe e não tem dinheiro: Lami, Belém Novo. Foram inundadas as cidades dormitório onde os trabalhadores das fábricas vão deitar, resignados e cansados ao anoitecer, escondidos, envergonhados: Eldorado do Sul, Canoas, Guaíba.
É forçoso observar que quando há enchente, muita gente se comove, leva mantimentos para os abrigos mesmo sem ter obrigação de fazê-lo, se oferece como voluntário para ajudar no resgate das vítimas. Até mesmo William Bonner apresentou o Jornal Nacional dentro de lanchas dos bombeiros ou com os pés dentro d’água nas áreas alagadas, emocionado com as situações testemunhadas. Isso é maravilhoso, realmente, mas como nos ensinou o narrador do jogo, é só até o caído se recompor, o importante é o jogo continuar sem mudanças nas regras. Passada a tragédia, duvido que verei pessoas comovidas, ajudando a construir casas em locais melhores para os pobres ou levando mantimentos aos excluídos. Duvido que verei o Bonner apresentando o jornal numa laje da favela, horrorizado com a miséria do país que vive. Os ribeirinhos vão continuar à margem social assim que a água baixar, vão continuar a trabalhar calados, vão continuar a viver nas planícies de inundação e se resignar a ser vulneráveis, porque o jogo social que criamos, essa seita fundamentalista, é assim e assim é celebrado como justa. A fé no deus mercado é considerada normal, natural, justa, altruísta e linda inclusive pelos próprios ribeirinhos excluídos. Os dominantes da sociedade criaram uma religião com doutrina tão bem tecida que, por mais incrível que pareça, os dominados aceitam e se submetem a ela envolvidos com amor, fé e fidelidade às regras desse jogo perverso que ensinamos nas aulas aparentemente alienadas e despretensiosas de Educação Física escolar, mas que na verdade são extremamente engajadas numa ideologia política e econômica conservadora.
Eu, como professor de Educação Física nas escolas municipais do ensino fundamental, acabo sendo, ainda que contra a vontade, um agente reprodutor do sistema, verdadeiro sacerdote dessa seita macabra que leva morte e miséria à população. No entanto, me considero um herege dessa doutrina e pretendo transformá-la radicalmente. Jamais ensinaria esportes para meus alunos se não fosse obrigatório por lei. Pretendo subverter as regras e ensinar nas minhas aulas exatamente o oposto do que a doutrina atual prega. Sou sectário daquele judeu palestino que mandava “amar o próximo e dividir o pão” e daquele outro judeu alemão que dizia que a sociedade deve ser “de cada um, segundo suas capacidades, para cada um, segundo suas necessidades”. Quero que meus alunos se UNAM UNS COM OS OUTROS em COOPERAÇÃO, que colaborem entre si para atingir OBJETIVOS EM COMUM, que seus esforços sejam para que todos construam uma SOCIEDADE EQUÂNIME, onde não haja vencedores ou perdedores. Minha ação pedagógica será para ensinar que é possível que haja uma sociedade onde ninguém precise viver em brejos que inundam nas margens dos rios e, principalmente, que meus alunos não deem a mão para o próximo somente quando ele estiver caído.
P.S.: Não quero jogar dentro das mesmas quatro linhas daquele ex-presidente que idolatrava Elon Musk, que vestia a camiseta de times de futebol, dizia o nome de Deus em vão e se fingia de humilde, digníssimo representante da atual doutrina religiosa, capitalista, excludente, venenosa, mortal, genocida e esportiva.