Rizoma, cipoal e novelo: da Grécia antiga à Capoeira
Se estudarmos as raízes da Educação Pública brasileira, percebemos que tem um rizoma profundo, coisa que vem crescendo há milênios, enovelando diversas culturas, dos europeus aos indígenas, dos africanos aos orientais, exatamente como a população brasileira. No entanto, ao contrário do que esse cipoal de diversidade poderia supor, houve uma série de decisões políticas ao longo da história que foram conduzindo o imaginário popular da nação para o que se deve pensar sobre o assunto privilegiando um fio ideológico e empobrecendo o tecido social. Me interesso mais ainda quando se trata da Educação Física, área do conhecimento em que estou envolvido até os cabelos e me preocupo com os rumos de como a disciplina é ministrada e suas consequências na sociedade em que vivemos. O cidadão desatento nem percebe, mas está tudo conectado numa trama bem urdida. Alguém poderia escolher qualquer conteúdo da Educação Física para desfiar, mas eu quero iniciar a exemplificar a teia que me refiro neste texto com o que considero o conteúdo mais alegórico de todos: a capoeira.
A capoeira é uma tela bem tramada onde se pode pintar um belo quadro da luta que descreve maravilhosamente os meandros da cultura nacional atual. Há uma série de leis que os professores têm que estar atentos ao planejar suas ações pedagógicas. A partir da homologação da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) em 2017, todas as escolas brasileiras devem ensinar a história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as disciplinas (tema transversal) como forma de promover a valorização da diversidade e combater o racismo e a discriminação. Não é mais permitido legalmente ao docente simplesmente trazer um berimbau ao falar de capoeira, ensinar uma musiquinha, demonstrar como é o gingado e bater palmas com as crianças. Uma aula assim era divertida e as crianças saíam felizes, cantando e imitando os movimentos aprendidos, mas tão ocas e ignorantes como quando entraram na escola. A legislação atual exige uma contextualização da atividade para que o discente se aproprie de sua cultura com consciência histórica e criticidade. Assim, me esforço no planejamento, preocupado que sou em não ser acusado de alguma negligência.
Coloco uma frase no quadro para os alunos se situarem sobre o que vamos estudar, o tema gerador. Em seguida, convido os alunos que já praticam capoeira para explicar o que sabem. Poucas falas ousam desafiar o constrangimento adolescente, mas faço questionamentos sobre as que afloram. Começo indagando as origens da palavra capoeira. O termo vem da língua tupi. Explico que o tupi, nos tempos do Brasil colônia, era a língua mais falada nas grandes cidades costeiras do país, pois ali moravam há milênios os indígenas nativos falantes desse idioma muito antes da invasão portuguesa. As crianças se surpreendem, imaginam que o português é falado desde sempre por aqui. Tupi quer dizer povo. Aproveito para explicar que o Brasil não se chamava Brasil naquele tempo. Em tupi o povo conhecia a região como “Pindorama”, terra das palmeiras. Os alunos se chocam com essa informação, seu mundo sólido está se liquefazendo numa aula em que a primeira coisa que o professor escreveu no quadro foi “Lutas”, e sublinhou. Não era para a gente aprender sobre lutas? Então! Estamos chegando lá, calma! Mas as coisas não vêm flutuando no espaço, alienadas do mundo, elas estão imersas em todo um contexto histórico. Para estudar a capoeira é preciso que estudemos as línguas das pessoas que a criaram para entender o que elas estavam pensando na época. Mostro um livrinho infantil da biblioteca da escola com vários termos em tupi e provo que eles também ainda falam o tupi sem nem se dar conta. De pipoca a paçoca, de guri a abacaxi, tudo é tupi e lá em Portugal não entendem essas palavras, é coisa só nossa, como a capoeira. Capoeira então vem de “ka’a”, que é mato em tupi, e “poeira”, que é algo como aquele que foi. Pergunto, na sequência, porque alguém iria chamar a luta de “aquele que foi para o mato”? A resposta é que o termo se referia àqueles que fugiam da escravidão, do estupro, dos castigos físicos, para o mato. A turma se inflama. Um fala: Eu fugiria! Uma menina grita: Se me estuprarem, eu mato! Outro argumenta: Se o cara fugia não precisava nem lutar! Explico sobre o sequestro de africanos, desenho um pequeno mapa mundi no quadro com Península Ibérica, América do Sul e África. As crianças protestam: é aula de Educação Física, não geografia! Me esforço para explicar os motivos religiosos que faziam os portugueses crerem que eram moralmente superiores aos indígenas nativos e aos africanos. Desenho um navio negreiro, tento fazê-los entender o que era uma senzala, fechada à noite, ensino sobre as correntes, sobre os capitães do mato que saiam à caça do fugitivo usando cães farejadores como se fossem caçar animais, das dificuldades de sobreviver no mato, da falta de estradas, dos castigos físicos quando capturados, mostro a foto das cicatrizes nas costas de um fugitivo recapturado e outra de um pelourinho onde o sujeito era torturado em público e ficava sangrando até amansar, até jogavam sal nas feridas abertas para aumentar o sofrimento e o arrependimento. Sigo o debate tentando responder as dúvidas que surgem. Mostro um vídeo de uma roda de instrumentistas, cantando e batendo palmas num ritmo próprio, com dois falsos dançarinos gingando com a música, falo sobre os instrumentos indígenas e africanos usados na prática da luta. Porque eles tinham que fingir ser uma simples dança para treinar a luta? Porque hoje em dia se fala “jogar” capoeira? Afinal é luta, dança, ginástica, jogo ou esporte? Se é luta, porque não há contato entre os participantes além de um amigável aperto de mãos no começo? As crianças são um abundante manancial de curiosidade e a aula se adensa estudando profundamente o fenômeno sem ninguém nem sair da sala para o ginásio. O alunado se indigna quando conto que a capoeira foi proibida por lei durante séculos no país porque era uma manifestação de africanos e indígenas escravizados e a pequena elite branca que decidia as políticas públicas não queria validar nada que viesse deles, nem música, nem dança, nem religião, nem idioma, nem gastronomia, muito menos se fosse algo para ajudar na fuga dos escravos. O objetivo era apagar e vilipendiar a história e a cultura de todos os povos originários.
Veja que, para estudar a capoeira, obedecendo a legislação vigente, tive que puxar vários fios para tecer o conteúdo. Ao estudar a luta, precisamos estudar primeiro um pouco do idioma Tupi e sua enorme influência no português falado no Brasil, a geografia das etnias que migraram para o país, os motivos que autorizavam os portugueses a matar, torturar, escravizar e estuprar sem culpa devido às crenças de sua religião cristã, a história de resistência dos escravizados africanos tentando escapar daquele jugo, a política pública que colocava a capoeira na clandestinidade, a luta que fingia ser dança em rodas de pessoas fazendo uma música com ritmo característico, cantando e tocando instrumentos indígenas, tudo para tentar entender a cultura nacional atual e onde a capoeira se insere. Ao se tentar puxar o fio da capoeira, o que vem é toda uma tessitura indissociável.
Somente aí, depois de toda essa exposição, posso procurar um berimbau para experimentar o gingado… Mas não o faço. Sou da opinião que as lutas não deveriam ser ensinadas na escola, nem as brasileiras, nem as estrangeiras, mas a lei me obriga a trabalhar com elas, assim como os esportes. Para que ensinar a lutar? Os japoneses e coreanos que migraram para o Brasil exigem que o judô, caratê e o jiu jitsu sejam ensinados nas escolas, principalmente nos estados do Paraná e São Paulo. Aprender a derrubar os outros, é isso? O sucesso de alguém só acontece se houver a derrota de outro? Depois da BNCC, os legisladores decidiram a idade em que cada conteúdo deve ser trabalhado e lá estão explicitados tanto as lutas, quanto os esportes desde a mais tenra idade na escola básica. Sério? É essa a sociedade que queremos, colocando uns contra os outros para competir até descobrir quem é o único vencedor? A sociedade deve mimetizar um pódio, com degraus hierárquicos de virtude moral, onde uns poucos incluídos se posicionam num nível acima da massa excluída? Acredito ser um equívoco tremendo, mas os políticos decidiram diferente. Lutas é um assunto que só admito trabalhar teoricamente com meus alunos, não quero que ninguém tente derrubar ou esganar o colega numa aula prática de luta. Me sinto obrigado a investigar porque se exige o estudo das lutas nas escolas. O que levou os educadores a aceitar que se ensine algo que faz as crianças aprenderem a decidir conflitos medindo forças corporalmente? Ah, o rizoma é profundo e precisamos ser radicais na investigação! A raíz disso tudo começa onde?
Pouca gente sabe, mas desde a antiguidade, quando passou a existir algo parecido com a instituição que agora conhecemos como escola, uma educação sistematizada exercida por um profissional que não era um dos progenitores, o aprendizado do bom controle e cuidado com o corpo tem papel central. Na Grécia, nos arredores de Atenas, o filósofo Platão organizou uma escola ao ar livre, numa colina chamada Akadémia. Era um local com bosques e muito ar puro, frequentado somente por homens. Na trilha para lá havia um pórtico em que se lia: “Aqui só entra quem sabe geometria”. Lá os cidadãos atenienses, homens livres e com posses, filosofavam, ou seja: conversavam sobre política, justiça, amor, biologia, direito e muita matemática enquanto faziam exercícios de ginástica. A própria palavra “ginástica" vem do grego “gymnos” que significa… nu. Sim, você já adivinhou, era um local em que se fazia atividades físicas sem roupas enquanto divagavam sobre assuntos diversos. Se acreditava que assim, peladão como veio ao mundo, contemplando a natureza virgem e a “pólis” de longe, “sarado” devido ao treinamento, surgiriam pensamentos belos, puros e saudáveis também. Claro que os caras que faziam isso eram ricos e tinham muitos escravos, filhinhos de papais almofadinhas que podiam ficar malhando as tardes inteiras, debatendo sobre a dicotomia entre corpo e alma, sem trabalhar. O próprio Platão era o garoto propaganda perfeito para sua escola de pensamento: seu nome verdadeiro era Arístocles, mas, por ele ter costas largas e ombros fortes devido ao treinamento que pregava e praticava, o apelidaram de Platão, algo como “paletão” em grego. Seu apelido era também um elogio às suas ideias que teriam a envergadura de um atleta da razão.
O Império Romano era os Estados Unidos da época, beligerante, logo invadiu a Grécia e seus líderes entenderam a coisa toda. Em latim, essas ideias gregas de filosofar pelado, foram traduzidas como “mens sana in corpore sano”, ou seja, mente sã em corpo são. A mente tem que ser treinada tanto quanto o corpo. A matemática ou a política só se revelariam em corpos fortes e simétricos. Portugal era um subúrbio romano, uma província distante, mas aquela cultura logo se espalhou para lá também, assim como o idioma latino. Durante quase toda sua existência, o Império Romano foi laico e interferiu o mínimo possível na cultura dos locais invadidos, porém, próximo ao seu final, quando já se fragmentava devido ao seu gigantismo, o Imperador Constantino se converteu ao cristianismo, religião recém sistematizada pelo cidadão romano Paulo de Tarso, e exigiu que todo império também adotasse essa religião como oficial, tornando Roma a sede da seita nascida na Palestina. Perceba como os rizomas se enredam, se contradizem, se anulam e aos poucos se reforçam num confuso emaranhado: uma das coisas que os beligerantes romanos proibiram ao dominar a Grécia e adotar o cristianismo foi a religião grega e o festival religioso em honra a Zeus, os Jogos Olímpicos. Com o fim do Império Romano, Portugal se tornou ele mesmo uma potência em navegação e conquistas. Invadia as terras de nações indígenas no recém descoberto novo mundo, matava, estuprava e escravizava os nativos à vontade, rezava missas em Latim impondo sua cultura. E assim chegamos à atualidade brasileira. Até hoje, mesmo passado quase 2300 anos da morte de Platão e estando a mais de 10.000 km de distância da capital grega, tanto universidades como os locais para fazer ginástica são conhecidos como academias em referência àquela escola criada por Platão na colina próxima a Atenas. E é no início da vida acadêmica, na escola básica, que se preserva as ideias grego-romanas de que o conhecimento acumulado da humanidade deve ser transmitido para os mais jovens sem descuidar da educação do físico. Há sempre um momento em que se leva as crianças à um “gymnasium” para que façam alguma atividade física. Sim, você já adivinhou de novo, ginásio era o local próprio para se fazer atividade física nu. A diferença para a escola de Platão é que, aqui no Brasil, devido a religião cristã adotada como oficial pelos invasores romanos, em que o corpo é o templo do Espírito Santo e a mente deve controlar os desejos da carne em respeito à pureza dos pensamentos, os alunos são impedidos de ficar nus, mas os shortinhos e a camiseta física estão permitidos, aliás, por décadas foi o uniforme escolar oficial obrigatório para as aulas de Educação Física. Perceba, caro leitor, o cipoal de culturas, religiões e idiomas que vão se enredando.
No começo do que conhecemos hoje em dia como Brasil, os genocidas escravocratas portugueses que aqui chegavam não viam necessidade de ensinar qualquer coisa aos indígenas nativos ou africanos que sequestravam e traziam para cá acorrentados para escravizar. No entanto, a natureza logo obrigou os tomadores de decisão descendentes de europeus que aqui viviam a repensar esse posicionamento político. Com a epidemia de gripe espanhola no começo do século vinte, se percebeu a necessidade de ensinar higiene corporal para toda a população: lavar as mãos antes das refeições, tomar banho, trocar de roupas diariamente e fazer atividades físicas ao ar livre eram as orientações da época para todo mundo, não só brancos. O vírus era democrático e republicano, não se importava com a cor do indivíduo ou sua classe social. A Educação Física entrou com essa função nas escolas criadas, foi a fase higienista da disciplina no país. É incrível pensar que uma das maiores motivações dos legisladores para universalizar o ensino público foi a necessidade de salvar a própria pele. Claro que, além de higiene pessoal, podiam controlar facilmente o que seria ensinado às crianças dos despossuídos, da língua portuguesa à religião cristã, além da doutrina de submissão e obediência para formar operários de fábricas que pudessem ler e fazer contas. A universalização da escola pública foi o último prego no caixão da popularidade do idioma tupi e das religiões de matrizes africanas e indígenas. Curiosamente, na mesma época na Europa, alguns educadores franceses recriavam os Jogos Olímpicos, mas com algumas adaptações cristãs: os atletas não mais competiam nus, as lutas não eram mais até a morte e os jogos não eram mais em honra a Zeus. O mundo dá muitas voltas e, de liame em liame, o novelo só vai engrossando.
Depois do período higienista, quando o Brasil passou a se envolver em guerras mundiais, a política mudou o foco da necessidade de escolas públicas e da Educação Física em particular. Agora o objetivo era formar soldados aptos para as batalhas, foi a fase militarista. Muito treinamento de força e longas corridas para fortalecer músculos e aumentar a resistência cardiovascular dos corpos dos futuros pracinhas. A Educação Física tinha grande importância no currículo e muito da carga horária dos estudantes era dedicada às práticas de ginástica e lutas, principalmente a esgrima. Os professores eram militares e os alunos eram ensinados a matar. De novo, é difícil de acreditar que a disciplina já teve essa função. Hoje em dia, nem se admite pensar em crianças sendo preparadas para matar na guerra, mas durante duas décadas, foi assim.
Com o fim dos conflitos na Europa em 1945, os tomadores de decisão das políticas educacionais brasileiras resolveram que agora já se poderia deixar o assunto da educação pública para os educadores profissionais. Dessa forma, a formação das crianças deveria ser integral, como pensava Platão na Grécia antiga. De novo, a Educação Física era o centro do processo pedagógico. Se acreditava que a música, a dança, as brincadeiras de roda, os esportes, os jogos e a ginástica seriam promotoras de saúde física e mental para que as crianças se desenvolvessem otimamente. A socialização harmônica, divertida, acolhedora e afetuosa era o objetivo principal da disciplina. Essa fase, conhecida como pedagogicista, era uma reação à fase militarista que excluía a ludicidade da infância. Infelizmente, essa fase sucumbiu à ignorância dos políticos com o golpe militar de 1964.
Durante o regime militar, a Educação Física tomou um novo rumo no Brasil. Deixou de ter papel central na vida escolar para ser só mais um instrumento de doutrinação ideológica. A carga horária diminuiu para somente três horas semanais e a ênfase foi dada aos esportes. As crianças precisavam aprender a seguir regras, nunca propor mudanças nelas e, principalmente, obedecer às autoridades e isso é exatamente o que os esportes ensinam. Além disso, os esportes ainda ensinam a cooperar com o próprio time para lutar contra um “inimiguinho” de faz de conta que obstaculiza o grupo para chegar à virtude, à vitória. Essa fase da Educação Física brasileira ficou conhecida como competitivista e deixou marcas profundas nas políticas nacionais de educação. Grandes ginásios poliesportivos foram construídos em muitas escolas em todas as cidades do país. Os militares queriam dividir a população, fracionar infinitesimalmente a união e solidariedade entre grupos colocando uns contra os outros ao valorizar ao máximo os esportes. Para piorar, bem nessa época estava começando a popularização dos aparelhos de rádio e televisão no país que ajudaram muito a difundir entre a população esses valores competitivistas.
Com a redemocratização da nação em 1985, vários teóricos da Educação Física se propuseram a repensar a disciplina, mas o estrago já estava feito. O capitalismo encontrou nos esportes, potencializados por aparelhos de radiodifusão e televisionamento, terreno fértil para a propagação de um mercado ideal. A ideologia capitalista, em que só alguns poucos vencem na vida e a maioria perde e isso seria normal e justo, contaminou o imaginário popular de uma forma totalitária. É esse o fio ideológico privilegiado atualmente, o capitalista. Qualquer discurso contrário é respondido de forma imediata e violenta em coro ou jogral. Grandes lobbies milionários passaram a envolver os legisladores que elaboraram a constituição de 1988 com discursos inflamados sobre altruísmo, saúde e cidadania para justificar a permanência e o incentivo dos esportes e lutas nas escolas, agora obrigatórios por lei. A droga viciante da ideologia esportiva facilitou tudo, pois as crianças viciam com facilidade no prazer momentâneo que proporciona. Mesmo pessoas adultas e sensatas não percebem que os esportes são a maior, melhor e mais central engrenagem da máquina capitalista que alavanca a exclusão, azeita a segregação, potencializa o machismo, o racismo, a homofobia, a gordofobia, a xenofobia, o etarismo e o capacitismo.
Não estamos mais envolvidos em nenhuma guerra mundial em que precisamos nos preparar para batalhas. Não estamos mais em nenhum regime militar, podemos questionar regras e até modificá-las. Não temos mais professores militares, não precisamos ensinar a matar. Qual a justificativa atual para se ensinar as lutas e esportes na escola? Não há. O que há é uma grande dificuldade de se desenredar de um passado urdido em sociedades aristocráticas e belicosas como a grega ou romana ou do presente da trama fechada do império do capital. O cipoal da tradição se mistura com os lobbies da sociedade de mercado para que se perpetue uma sociedade excludente em que só alguns devem vencer na vida. Querem nos fazer acreditar que a vida só pode ser assim. Assim como nos obrigam a falar o português e tentam apagar o Tupi ou alguma língua africana da nossa cultura, assim como nos obrigam a encontrar Jesus como a verdade e a vida e desdenham de nossas religiões indígenas, assim como nos fazem aceitar pacificamente uma sociedade com diferenças sociais brutais e jamais propor uma revolução, nos ensinam que os esportes e as lutas devam ser vistos como uma verdadeira panacéia social. Segundo o mercado, o esporte faz bem para a saúde, afasta das drogas, promove a inclusão e tantas outras falácias que a ciência prova exatamente o contrário. Exatamente o contrário, eu repito!!! É tudo mentira que colou! A maior razão para continuar ensinando lutas e esportes na escola pública é para perpetuar a diferença social. Os aristocratas que nunca limparam sua própria privada ou lavaram sua própria louça querem que alguém o faça, exatamente como Platão na Grécia antiga. Tudo bem que a capoeira tenha encorajado os escravizados a lutar por sua liberdade, mas daí à não serem serviçais de ricos já é demais!
Os legisladores atuais não querem que deixe de existir pobres, afinal, alguém tem que fazer o trabalho sujo e pesado. A própria BNCC é um cipoal de interesses confusos, reflexos das ideologias em conflito no país. Ao mesmo tempo que tricota um belo quadro em suas competências gerais, objetivo final do sistema escolar brasileiro a ser alcançado por todos os jovens formados no Brasil, em que as crianças devem aprender a cooperar, a se solidarizar com o próximo, a colaborar para construir uma sociedade fraterna, a exercitar a empatia, exige que os professores de Educação Física ensinem a derrubar os outros, a derrotar o próximo. Esse mau hábito deveria ser relegado a instituições especializadas, não a escolas regulares. Alguém que ache importante que seu filho aprenda a imobilizar alguém deveria procurar uma academia de judô ou algo assim. Os pais que querem agir como “coaches” de futuros empresários, pessoas para quem valores monetários são mais importantes que valores morais, poderiam matricular seus filhos numa escolinha de futebol ou basquete.
Sim, temos essa herança greco-romana e vivemos numa sociedade capitalista, mas precisamos avançar. Diante desse limão ácido que me é imposto, decidi fazer uma doce limonada. Sou a resistência na linha de frente da guerra às ideologias capitalistas excludentes. Nas minhas aulas me escoro na legislação vigente e aproveito para explorar os porquês das lutas e esportes surgirem no Brasil como conteúdo escolar. Já que essas leis também obrigam a trabalhar as culturas africanas e indígenas, vamos estudar o lado dos oprimidos: porque aprender a lutar em algum momento foi necessário para manter a vida dos excluídos como na capoeira? Oba, vamos estudar o fenômeno antropológico das lutas brasileiras então, as ordens vieram de cima, eu só obedeço.
Agora, caro leitor, você já pode estar imaginando que esse professor que vos escreve não consegue dissociar nenhum conteúdo de seu contexto histórico. Sim, é verdade! As coisas não surgem do nada e sem razões palpáveis, os motivos do ensino de lutas e esportes são materiais e históricos. Para estudar qualquer assunto relacionado ao movimento humano, mesmo tentando isolar os assuntos, forçosamente, com as dúvidas que os alunos vão apresentando, me vejo obrigado a fazer conexões das mais diversas. Meus críticos falam que a Educação Física não deve se envolver com os assuntos de outras disciplinas. Principalmente, não deveria me meter em questões políticas, são os defensores da “escola sem partido”. Ora, a escola sem partido é justamente uma escola com partido, o partido conservador, do tempo da ditadura militar, em que as crianças não deveriam pensar e questionar, somente obedecer às autoridades e seguir regras para manter a ordem social como está. Discordo, acredito que o modo como as coisas estão na sociedade não é justo, há muita desigualdade, não quero que permaneça assim. Quero que as crianças percebam isso, quero que pensem em fugir da opressão, que fujam para as colinas, que fujam para as academias para pensar, que busquem pensamentos puros. Quero que sejam capoeiras, que fujam para o mato, conscientes de seu valor. Que não admitam o jugo nas costas. Quero uma escola com partido, que se posicione contra as desigualdades, que lute para grandes mudanças sociais em direção a uma maior sofisticação moral da coletividade em que vivemos.
Assim como a capoeira, todos os outros assuntos da disciplina da Educação Física na escola tem todo um contexto histórico que, se não for estudado, o conteúdo fica esvaziado e desprovido de sentido. Mero entretenimento para as crianças, recreação. Veja o exemplo do futebol, as crianças adorariam que eu largasse uma bola e os deixasse usufruir acriticamente do esporte como se fosse um refrigerante Fanta. Mas garanto, caro leitor, o cipoal do futebol é complexo como o da capoeira e a história que o envolve é tão vil quanto.
A fase atual da Educação Física escolar brasileira é conhecida como popular, teve início com a redemocratização em 1985 e ganhou força com a constituição cidadã de 1988 e a BNCC de 2017. A própria lei agora coloca a Educação Física na área das linguagens, ou seja, um produto da cultura. Os alunos têm que sair das escolas aptos a avaliar criticamente, questionar, argumentar, propor mudanças. No meu entendimento, a lei me exorta a apresentar sempre o cipoal todo. Você à essa altura já percebeu o tamanho do rolo que é ensinar numa escola básica. Não dá para escolher um único fio da história e achar que dá para isolá-lo do novelo da humanidade, a não ser, claro, que se queira enganar alguém, mostrando só um pedacinho, como trazer um berimbau e ensinar o gingado. Alguma coisa em algum momento vai “enozar”, as crianças não são parvas como os adultos, elas fazem questionamentos se forem ensinadas a pensar e não só a aceitar, não admitem “verdades” absolutas.
Uma última reflexão para encerrar esse já longo texto. É preciso lembrar que os famosos filósofos gregos, todos, sempre iam estudar na África em algum momento da vida. O continente negro era o centro do conhecimento da época, lugar onde a humanidade nasceu e viveu a maior parte de sua existência como espécie. Todas as universidades e maiores bibliotecas estavam lá. Os maiores matemáticos e astrônomos do mundo lá estudavam e ensinavam o que sabiam. Veja que começamos a fechar o liame com os africanos escravizados da capoeira brasileira, as conexões são ancestrais. A Europa 300 a.C. (veja que até mesmo a contagem do tempo no ocidente é cristã, a.C significa antes de Cristo), época do “milagre” grego, era uma arrabalde ignorante do mundo, lugar onde os matutos viviam. O problema vem daí, ignorantes armados são extremamente perigosos. Hoje em dia se tenta apagar esse fato, mas basta desfiar um pouquinho do novelo da história para que apareça os fios de cores que os dominantes de agora querem que o mundo esqueça. Os gregos que tinham condições mandavam seus filhos para lá estudar. Nosso Platão, por exemplo, estudou na África. Platão foi tutor de um sujeito chamado Aristóteles. Aristóteles teve um aluno chamado Alexandre. Alexandre se tornou imperador grego e expandiu o império para dominar… o Egito, à força, claro. Alexandre fundou uma cidade na foz do Nilo, um grande porto, que deu seu próprio nome, Alexandria. Mandou reunir numa biblioteca enorme, todos os textos conhecidos e construiu um farol na ilha de Pharos, bem na frente da cidade, para guiar, dia e noite os barcos para o saber. Aliás, a própria palavra farol deriva do nome da ilha em que foi construído. Os romanos invadiram a Grécia e tocaram fogo em Alexandria, inclusive naquela valiosa biblioteca africana. A tentativa de apagamento da cultura grega e africana pelos beligerantes romanos foi semelhante à tentativa dos portugueses de apagar e vilipendiar o tupi e as culturas indígenas e africanas aqui no país como fizeram, por exemplo, com a capoeira.
P.S.: Enquanto escrevo esse texto, um sujeito que se diz cristão e frequenta academias de musculação, resolveu uma briga de trânsito com um caminhão de recolhimento de lixo, matando com um tiro um gari que tentava proteger a motorista do caminhão, uma mulher desarmada fazendo seu trabalho. Esse episódio fala muito sobre os mitos que envolvem o esporte. Mais uma falácia grega que pode ser problematizada: aparecem pensamentos puros nas pessoas que treinam o corpo? Ele matou para ir treinar seu corpo simétrico. Se você não sabe como os brancos europeus dominaram e escravizaram povos africanos e indígenas, foi exatamente por isso, por ter armas de fogo na mão. Dou um pirulito para quem adivinhar a cor do saradão bombadão que atirou e do gari que morreu.