domingo, 28 de outubro de 2018


A fauna ensandecida do Ocidente
Uma ocasião, quando adolescente, era o finalzinho da ditadura, talvez 85, veio a calhar de eu ir ao bar Ocidente no Bom Fim em Porto Alegre. Queria muito conhecer, mas jamais teria iniciativa para ir sozinho lá. Fui arrastado por uma de minhas irmãs mais velhas, ela combinou de encontrar alguém. Na época, era o lugar mais avant-guarde da cidade, era a referência do que havia de fantasticamente inovador no cenário cultural. Subimos a escadinha, o lugar era escuro e pequeno, no segundo andar de um antigo prédio caindo aos pedaços, não fiquei nem um pouco impressionado. As paredes eram pintadas de preto e umas luzes neon roxas iluminavam o balcão. Como em qualquer bar, não tinha nada para fazer, só sentar, beber e conversar meio aos gritos, atrapalhados pela fumaça e som alto da bandinha no canto. Achei um saco, nem beber eu bebia, o bar lotado, todo mundo meio se coxando e fumando no aperto. Mas precisava ver alguma coisa legal lá, afinal, todo mundo desejava estar ali e eu estava. Fiquei olhando os frequentadores, eram muito esquisitos! A fauna presente era variadíssima, como no bar do Guerra nas Estrelas. Eu tinha uns dezesseis anos e achei todos eles muito adultos, alguns até velhos. Um casal, sentado numa mesa a minha frente, dividia uma cerveja e se olhavam sem parar nos olhos com tédio. Porém, de cinco em cinco minutos, tiravam as línguas para fora e davam uma enorme lambida na língua do outro. Não era um beijo, era uma lambida mesmo, como se um fosse o sorvete gigante do outro. Pela primeira vez vi piercings e alargadores de orelhas, beijos gay, tatuagens e cabelos raspados só de um lado. Era um povo livre, democrático, de outro mundo, muito a frente de seu tempo careta do Brasil de então, artistas, pensadores, nunca os tinha visto de dia na rua. Minha irmã apontou alguém e falou seu nome, disse que era músico. Já tinha ouvido falar do cara, mas não conhecia nada dele, não me interessou. Finalmente, encontrado o amigo naquela confusão e bebido um único gole gelado, minha irmã e ele resolveram sair do bar apertado. E eu sai junto, claro. Eu era um guri super passivo, ia onde mandavam, mas agora estava feliz. Eu havia estado no inferninho da moda, teria algum status para me gabar na escola. O ar fresco e puro da noite primaveril nas calçadas da redenção era muito melhor que o abafamento daquele ambiente fumacento. Mas a experiência me marcou.
Muito depois, aos vinte anos, ativamente tive a iniciativa de ir morar um tempo no exterior. Dias antes da Eleição de 89, quando Lula perdeu para Collor, fui parar em Amsterdam sem querer, não me deixaram entrar em Londres que era meu objetivo inicial. Peguei meus quatro primeiros aviões da vida num único dia e estava bem cansado, apesar da euforia da epopeia intergaláctica. Ao desembarcar, na estação central da cidade, sai caminhando a esmo, procurando a pousada para dormir. Era uma noite fresca de outubro, outono europeu, e logo percebi que tinha chegado no bar Ocidente do mundo. O albergue era no bairro da luz vermelha, me surpreendi com as prostitutas nas janelas. Punks, putas rebolando só de sutien, cabelos pintados de azul, gays de bigode e quepe como Freddy Mercury se beijando na boca no meio da rua e todo mundo fumando. Eu olhava tudo com grande curiosidade, mas fingia normalidade e tentava não demonstrar espanto, pois eu era um cidadão do mundo democrático depois de ter frequentado (por quinze minutos, mas valeu) o bar Ocidente na adolescência. Me senti o próprio Luke Skywalker negociando informações nas esquinas do bairro com seres tatuados e caudas coloridas.
Passados uns quinze anos voltei ao bar Ocidente, agora de curioso, por iniciativa própria. Estava andando a esmo pelo Bom Fim, saindo de uma festa de um curso que fazia a noite e passei na frente do inferninho pintado de negro. Lembrei da atmosfera de vanguarda e da sensação de estar visitando o futuro em outro mundo. Subi as escadinhas e encontrei mais ou menos a mesma cena, escuridão, barulho e aperto. Mas agora achei todos os frequentadores bem mais jovens do que eu e não vi nada de interessante, não fiquei nem cinco minutos e sai desapontado. Comentei com um tio o quão decepcionante foi a visita. Agora eram adolescentes que frequentavam o lugar. Que decadência triste. Meu tio me alertou que o bar não tinha mudado, agora eu é que era outro. Naquela primeira visita, a média de idade era a mesma da atual. O mundo não para e muitas noites frescas já abraçaram meu corpo. A impressão que tenho é que eles ficaram mais jovens, mas fui eu quem envelheceu.
Muitas voltas deu o mundo e minha irmã do meio arrumou um namorado compositor. Ele já estava coroa, mas tinha sido um grande personagem da minha trilha sonora de adolescência. Me agradava o relacionamento entre eles. Uma de suas canções comparava o Bom Fim com Berlim. Nunca estive em Berlim, mas acredito que na época que ele compôs, 1987, realmente não era muito diferente. O bairro era onde se reunia a nata da intelectualidade portoalegrense. Lá pelas tantas na música ele se refere aos frequentadores do bar Ocidente como uma “fauna ensandecida”. Essa frase me tocava muito, pois traduzia perfeitamente o que senti naquela primeira visita ao bar. Infelizmente, minha irmã acabou com o relacionamento antes que eu tivesse tempo para partilhar com ele minhas impressões do Ocidente e como sua música havia me preparado para não me espantar tanto com Amsterdam.
Passados trinta anos da primeira visita ao Ocidente, a mesma irmã que me levou lá convidou para o teatro. Volto a Porto Alegre numa noite fresca de outubro, primavera brasileira, dias antes da eleição de 2018, que Lula perdeu para o golpe. Chegamos bem cedo e podemos esperar tomando um café no foyer. Aos poucos foi chegando o público e, estranhamente, todo mundo me pareceu muito esquisito e familiar, apesar de não conhecer ninguém. Minha irmã me disse que o público desses eventos é sempre mais ou menos o mesmo. Bueno, concluo que ela mesma é uma das habitués, já os reconhece e com alguns até conversa. Num estalo me dou conta de onde os conheço: do bar Ocidente! Eram eles, os mesmos frequentadores, mas agora idosos. Tatuagens desbotadas e cabelos brancos, batas indianas disfarçando os quilos a mais e moccasins comportados. Distintos senhores e senhoras, um pouco esquisitos, dificilmente a gente os vê na rua de dia. São animais noturnos, como as prostitutas de Amsterdam. E noutro estalo caiu a ficha, estou eu ali no meio de novo, por mais quinze minutos, fingindo normalidade para não chamar a atenção, mas meio espantado e por dentro percebendo as voltas que o mundo dá. Eu também sou um bicho daqueles, agora de cabelos brancos. De tanto conhecer bares, ouvir canções, pedir informações para gente esquisita, assistir a peças de teatro, fazer viagens e estudos, muitos namoros e casamentos fracassados, trotar por Amsterdam ou Berlim, eu também sou um dos esquisitos frequentadores do bar. E também envelheci. A única coisa que não dá voltas é o tempo, ele é o único que segue sempre em frente, mas permanece imóvel e imutável.
A peça de teatro que assistimos, O Rei da Vela, era uma remontagem de um texto de 1933. Apesar de antiga, com poucas alterações nos nomes a peça ficou atual. Dá até dó de ver que o mundo dá várias voltas, mas as mazelas brasileiras seguem as mesmas. Ao final da encenação, o experiente ator/diretor da peça, Zé Celso, de 81 anos, fez um pequeno discurso. Ele lembrou de outros momentos que esteve em Porto Alegre. Alguns durante a ditadura, como tinha sido duro. Quando militares paravam a peça de teatro no meio e revistavam a plateia, coisas do tipo. Mas lembrou que o inverno mais rigoroso também passa e a primavera vem. E voltam as cores e a alegria. A arte volta também. Ele falou que aquele momento nosso, ali ao final do espetáculo, de alegria e arte, era uma primavera. Que os governos do PT no Brasil tinham sido uma primavera para o país. Que os Negros puderam existir, os pobres estudar, os gays aparecer. O país inteiro floriu. Falou que Haddad e Manuela são uma primavera também, lindos e jovens, como a arte, que se renova sempre. Como meu tio fez, Zé Celso também tentou chamar a atenção para a passagem do tempo e como nossas percepções das situações vividas podem mudar. Foi bem emocionante ver um velho experiente tentando nos dar esperança para o segundo turno e para um eventual governo Bolsonaro.
Não se apoquente, o mundo dará voltas independente do resultado das eleições e sempre haverá um Ocidente para ir encontrar uma fauna ensandecida pensando e fazendo um mundo mais colorido e alegre.

5 comentários:

  1. Adorei! Que bom que sempre podemos transcender e felizes sair da casinha planejada pra nós por outros! Eu sua humilde irmã mais nova, saí da casinha ao nascer e quero ir em bares intergaláticos se um povo do céu me convidar!

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  2. Eu ia direto no Oci com a Sabrina na nossa adolescência na década de 80, ficávamos no eixo Oci-Porto de Elis,às vezes trocando de buteco 3x na mesma noite! !! De busão heim!!!!

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