sábado, 14 de março de 2015

As cartas de amor são estranhas. Todo mundo sabe quando recebe tudo o que vai ser dito, geralmente de uma forma meio patética. Mas, mesmo assim, todo mundo lê até o fim várias vezes e se emociona igualmente todas as vezes. Este é para ser um textículo sobre amor, mas estranhamente vou começar falando de cachorro. Lá em casa a gente teve dois cachorros, na verdade foram duas cadelas. Nenhuma foi muito representativa na vida familiar. A primeira ficou só um ano, nós éramos pequenos e minha irmã do meio era quem gostava mais dela, chamava Pepita e era uma baita viralatóide. A Pepita crescia tão rápido que logo a casinha que a mãe tinha feito para ela ficou minúscula. Todas as manhãs nós procurávamos no pátio o estrago que ela tinha feito na noite anterior. Quando ela já estava do tamanho de um pastor alemão e já tinha comido alguns lençóis do varal, toalhas, uma calça de brim, todas as cadeiras da área e começado a roer a mesa de churrasco o pai deu ela para um amigo que tinha uma fazenda, apesar do choro da mana. A segunda cadela tinha o ridículo nome de Chiquita. Foi o padre quem deu pra mãe, se livrando daquela bomba. Ela era uma cruza de algo com pequinês, bem pequena. A Chica tinha um problema na coluna que a impedia de andar se pegasse frio, por isso dormia na lavanderia. Mesmo com este conforto, às vezes dava um surucutíco nela e quem fazia fisioterapia para ela voltar a andar era o bom e velho Tiagão. Eu que cuidava, dava banho, tosava no verão, remédios, passeios, tudo. Passei dois anos na Europa e na volta ela me reconheceu, saltou e chorou de felicidade, mas, como já era uma senhora idosa, caiu e ficou duas semanas deitada. Eu mandei matar quando ela já estava com doze anos, cega, surda e paralítica. Quem chorou fui eu. Lá na Europa, eu cuidava de um boxer que chamava Bingo. O dono dele o mimava muito, o cachorro fazia o que queria. Quando eu comecei a trabalhar lá botei ordem no galinheiro. Assim que o patrão ia pra casa, o pobre Bingo batia continência e passava a fazer exatamente o que eu mandava, se não entrava pro cacete. E era pau mesmo, espancamento, madeirada na cara. Até obedecer, quebrar o pau ou o focinho. Quanto mais eu batia, mais o cachorro me amava e respeitava. Mal me via e já vinha se retorcendo e chorando de alegria, em seguida se enfiava embaixo da escada, único lugar que eu deixava ele deitar. Eu era um companheiro cruel! Os melhores exemplos de cachorro, representativos na vida familiar, eu tive quando visitava meu tio em Rio Grande. Lá tinha duas cadelas muito interessantes. Uma chamava Margarida, ela era daquela espécie "cusco de la rue", vivia na frente da casa do meu tio. Todas as pessoas que freqüentavam aquela casa eram instruídas a nunca dar nada para Margarida, nem água, nem afago, nada. No entanto, ela não saia dali. A outra cadela era conhecida como Preta, Preta somente, não tinha nome. A Preta era preta, toda preta, tinha um porte bonito e esbelto, era puro músculo e tinha dentes enormes, o pelo era curto, liso e brilhante, a cara era séria, concentrada e paciente como a de um caçador. Ela cuidava da casa e de todos que lá moravam com muita eficiência todos os dias, sem feriado, descanso ou horário. A Preta tinha uma ligação especial comigo. Quando eu chegava ela me cumprimentava educadamente esboçando um sorriso e me olhando nos olhos. Depois deste breve momento ela não mais me olhava, mas sentava ao meu lado na varanda e se punha de guarda. Quando eu entrava na casa ela deitava e me esperava. Se eu saisse ela levantava, latia para o horizonte, abanava o rabo uma ou duas vezes e me acompanhava. Não interessava se eu saisse correndo, caminhando, de bicicleta ou à cavalo, ela ia comigo e ia na frente, cheirando o vento. Não interessava também se a jornada ia ser de cinco minutos ou uma tarde inteira, ela ia comigo e ia feliz. Na volta parecia me agradecer por eu ter deixado que ela me acompanhasse. Estas duas cadelas eram verdadeiros personagens da casa, sempre que eu ia lá tinha novas histórias com uma delas como protagonista. Eram histórias de amor, dedicação e heroísmo.
O ponto que quero chegar é a fidelidade canina. Sempre me impressionou muito. O dito popular que as mulheres usam quando se referem a homens canalhas - ele é um cachorro - é infundado, na minha opinião. Os cães são fiéis a quem eles amam. Sem questionamentos, sem racionalidade, somente amam. Mesmo que o cara não dê comida, mesmo que fique dois anos sem aparecer, mesmo que o espanque todos os dias, mesmo que resolva correr quatro horas sem parar. Ainda assim, os cães são fiéis, somente amam. Ainda assim, lambem a mão do dono e se atiram a seus pés em sinal de submissão, em pleno gozo. O amor lhes dá o prazer que os satisfaz.
Quando tinha uns dezoito anos, imaginei que talvez um dia encontrasse uma mulher que amasse tanto que seria naturalmente fiel como um cachorro. Na época, até escrevi uma frase que achava que representasse este sentimento e sonhei um dia poder ler para minha eleita meus sonhos de adolescente. Claro que isto nunca chegou a acontecer. O papelzinho onde escrevi ficou amarelado e amassado numa caixa de sapatos onde guardo recordações. Acredito que aquele papelzinho nunca terá o destino para o qual foi inicialmente idealizado. Quase o joguei fora umas duas vezes por ceticismo. Hoje, revirando aquela caixa, o encontrei e resolvi partilhar.
"Se tu, as três da madrugada, me acordasse com a tua necessidade inadiável de ser ouvida, eu com uma fidelidade, paixão e felicidade canina sorriria, bateria o rabo uma vez concordando, ganiria baixinho lambendo a tua mão e sentaria atento para escutar."

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